Cinema: Casca de Ferida traz provocação e perspectivas sociais

Curta-metragem de 12 minutos narra história quotidiana e atual que joga na cara da sociedade o preconceito, o julgamento e a invisibilidade discriminatória, uma cegueira proposital pela qual é acometida parte da sociedade

Todo ferimento no corpo que gera uma ferida precisa de cuidados para evitar que germes penetrem no organismo e causem infecções. O processo de cicatrização dessas feridas cria cascas que aparentam ser a cura. Quando a ferida começa a cicatrizar, é comum acreditar que a formação de cascas é um bom sinal. Afinal, parece que a ferida está se curando, certo? Bem, na verdade, a tal casquinha é composta por tecidos mortos que precisam ser liberadas pelo organismo para permitir a renovação celular e a formação de um tecido novo e saudável. E cutucar essa casca é fazê-la sangrar. A casca de ferida é invisível a quem não a carrega. Só quem tem sente o incômodo e a dor quando ela é tocada ou cutucada.

Essa é a analogia perfeitamente criada pelo curta-metragem “Casca de Ferida”, vídeo de 12 minutos de duração, produzido a partir do conto do roteirista, produtor e escritor Rodrigo Rocha, com roteiro e direção da também produtora Kellen Casara. “O filme retrata uma realidade que está em todo lugar. Basta abrir a janela e olhar para o mundo”, resume Rocha. A roteirista e diretora do curta, Kellen Casara, apostou na sensibilidade do conto de Rodrigo para apresentar, em 12 minutos, o impacto do racismo ante àquele que recebe a mensagem. “Motivada a instigar pela sensibilidade do conto a necessidade de falar das nossas mazelas, anseio de fazer alguma diferença e ajudar na luta contra o racismo e a desigualdade”, pontua a diretora.

Uma visão de Brasil que todos nós conhecemos ou já presenciamos, mas poucos enxergaram. Um script realista sobre invisibilidade social que, em tempos de vídeos curtos e mensagens menores ainda, instiga o expectador a querer um tempo a mais para algumas reflexões: Quantos invisíveis vi por aí? Quantos eu deixei de ver? Quantos eu realmente enxerguei? O que eles me ensinaram?

Com notas claras do cotidiano brasileiro, o curta-metragem mostra o Brasil que encarcera e julga os que estão inseridos na cor da desigualdade e na necessidade da ajuda do próximo. Segundo o último Censo (2022), o Brasil tem mais de 90 milhões de pessoas pardas e mais de 20 milhões de pessoas pretas, parcela que enfrenta a invisibilidade e a exclusão, vivendo de muitas formas uma violência real e dolorosa, que ceifa sonhos e faz o silêncio machucar quando a ferida é cutucada. O curta Casca de Ferida é como uma janela aberta para unir vozes, fazer muitas outras abrirem a porta para entrar na sala da disparidade e vivenciar que a miséria tem cor e classe social, que a violência se volta à cor e que a separação social segue o fio: a cor preta.

“Não há como não pensar nas marcas coloniais, escravocratas, que se reatualizam cotidianamente. Se incorporam”, provoca Camilo Braz, doutor em Ciências Sociais e professor de Antropologia na Universidade Federal de Goiás (UFG). “Ninguém enxerga o homem preto caminhando pela rua, cambaleando, ensanguentado. Ninguém pára a fim de oferecer ajuda. Ele está no lugar certo aos revirados olhos brancos – o problema não é tanto sua ausência, mas quando sua presença não corrobora com o estereótipo”, detalha o professor. Camilo também vai além e vê a situação como uma espécie de patologia social. “O Brasil dual se reforça em estruturas, materiais, simbólicas, cotidianamente. Somente em um país onde impera o racismo e a aporofobia a existência de elevadores sociais e de serviço, ou quartos de empregada, faz sentido”.

O ator Baale, que interpreta o personagem Pedro no curta, tem um olhar sobre a personalidade de Pedro e que é presente em milhões de brasileiros pretos e pardos. “As cenas não tinham palavras e davam o recado através das imagens e metáforas, como a da carne sendo moída”, relembra Baale. Emiliano Amaral, que interpreta outro personagem importante à trama, sentiu o quanto a invisibilidade ainda é presente naquele que não carrega a dor. “Ao saber do meu personagem, a princípio fiquei um pouco incomodado e pensativo por ter que me passar por mais um homem branco no mundo que se acha superior e tendo atitudes racistas. Mas, durante o ensaio com o pessoal nos conhecemos e nos possibilitamos essa atuação. Ao final só queria abraçar a todos”, conta emocionado.

Para o professor Camilo Braz, o filme desperta o peso de processos históricos, econômicos, sociais, políticos e culturais que envolvem o racismo e a aporofobia. “A expectativa de que um homem preto, pobre, trabalhador possa voltar para casa após um dia de trabalho e de enfrentamento com variadas formas de opressão para trazer carne moída para a esposa grávida deveria ser uma cena trivial. Se fossem personagens brancas”. Mas, segundo ele, a espera, no filme, não se converte em uma pedagogia não do esperançar. “Acredito que isso nos leva a refletir como discutir esses temas é falar sobre o que Achille Mbembe nomeia como necropolítica. Um ‘fazer-morrer’”. O antropólogo também lembra outro ponto apresentado no filme: as fake news que, nesse caso, “assemelham-se às fofocas, que são um fenômeno sociológico e antropológico – produzem e reproduzem relações sociais e, dentre elas, a falácia de que a culpa por processos desumanizantes e mortíferos é da vítima”, sentencia.

Sobre o filme

Pedro, o personagem central, reúne todos os elementos que sustentam a dor da invisibilidade social brasileira. E ele provoca inquietação. É o recorte de uma esquina, a presença real em cenas de cidade vividas pela periferia, é a voz de milhões de pessoas que, assim como ele, sentem o direito roubado de ser pessoa. É o chão. São 12 minutos que te fazem grudar na tela e parar para ver, para comentar e criar outros finais. E pode haver dezenas deles. Há sempre um desejo de virar a história, de contar sob outra perspectiva. É assim que o filme se une ao expectador para atingir o objetivo: provocar.

Com apoio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar n° 195, de 2022, criada para incentivar a cultura e garantir ações emergenciais), o filme foi contemplado pelo edital Nº 3/2023 como produção curta metragem, obra seriada e telefilmes de ficção ou animação.

EQUIPE CASCA DE FERIDA

Diretora e roteirista: @kellencasara

Produtor Executivo e roteirista: @rodrigocelestinorochaescritor

Diretor de produção: @faustoborgess

Direção de fotografia: @sebastiao_silvestre_de_castro

Direção de arte e Figurino: @nelcibatistas

Preparadora e Produtora de elenco: @renatactorres02

Maquiagem e caracterização: @nayfogaca

Som: @vasconcelos_neto1

Trilha sonora original: @roque_estrela

Edição e Montagem: @diogogarcia

Equipe técnica: @Joaovitorsilva51 @marrecocosta @vava_eletrica @manuclear @boscofilms @victorianolasco @Marcellokavalcante

Imprensa: @10benetti @rimene

Produtora: @gatapretaproducoes

Coprodutora: @abauteproducoes

Social Design: @roberto_gobatto Acessibilidade: @melgacoacessibilidade

Fotos da esquerda para direita: Cenas Casca de Ferida; Camilo Braz Doutor em Ciências Sociais; Kellen Casara produtora e diretora do curta Casca de Ferida e Rodrigo Rocha produtor e roteirista do Casca de Ferida (foto preto e branco).